Perdoem pelo lugar comum: o bar estava apinhado de gente – e não poderia ser outra coisa. O “Pingüim” nunca esteve vazio, nem quando fechado para limpeza. Durante o dia, havia sempre alguém perambulando pelas suas dependências, atraído como ímã. O bar marcou gerações, na década de setenta, em Marabá.
Como noturno sempre foi meu forte, lá estava eu, ao lado de Valvilson Santos, Bentinho e Divino, sentados numa mesa bem ao fundo, na penumbra, ouvindo João tocar no palco. Os quatro integravam o ‘conjunto’ “Os Brasas Seis” (o termo banda veio predominar muitos anos depois), cada qual originário de um Estado: Pernambuco, Minas e Goiás.
João era um baixista quase à perfeição. Igual à ele, vi poucos. Até hoje. Baixista e exímio violinista.
Na hora de “pegar” uma música nova, tínhamos sempre de tê-lo ao lado, com sua sensibilidade para a busca da nota musical que se encaixasse melhor na harmonia.
Quando João morreu, pescando, entranhado numa tarrafa no Lago de Tucuruí, praticando o lazer que mais gostava, depois da música, o sonho acabou. “Os Brasas” e o “Pingüim” esvoaçaram -, como nuvem passageira de verão.
Voltando ao que eu ia contar.
Ao fundo, contritos, ouvíamos João tocando João Gilberto. “Chega de saudade, a realidade é que sem ela não há paz…” De repente, encosta ao meu lado um sujeito vestido de preto: sapatos, calça, camisa e um chapéu panamá, também preto. A boca próximo ao meu ouvido:
– Sou contra a muitas coisas que a sociedade acha normais.
– Como assim?, pergunto, sem entender nada.
– Isto aqui é um inferno. Fumaça, bebida, som alto, prefiro uma caverna confortável. Se tiver janelas para o oceano, melhor ainda.
Não podia mais curtir a bela voz de João. O sujeito enigmático, sem emitir qualquer bafo de bebida alcoólica ou sintoma de drogas, agora estava ao meu lado puxando pelo ombro e soltando a língua.
– O cheiro de fumo misturado a álcool causa-me asco. Como é que vocês suportam isso?
Cercado por um estranho cujo nome nunca soube, tentei pedir socorro aos colegas da mesa, falando baixinho para Valvilson.
– A “mala” aqui, como faço para me livrar dela?
– Pelo amor de Deus, suporte a dor, o rapaz freqüenta aqui há uma semana gastando muita grana. Parece que ele veio do além, mas o que importa é a bufunfa que está deixando.
A observação de Valvilson me pôs a tergiversar. A partir dali, a tudo que o sujeito de preto falava, simplesmente eu balançava afirmativamente a tudo que dizia. Mesmo expressando alguma opinião, não me entenderia.
– Tem muita mulher aqui, mas todas acompanhadas. Isto aqui parece uma ilha com muitos, mas para poucos.
– Questão de oportunidade, parceiro. Mulher tem que estar disponível -, tentei filosofar com minha visão de pensador chinfrim.
– Qual nada, qual nada! Faz dias procuro alguma que me dispense um olhar, um segundo de atenção, mas ninguém se dispõe a isso.
– Não vá querer encontrar aqui sua cara-metade. O lance é de fugacidade. Uma aventura fugaz pode dar mais resultado. Tentei consertar, ao mesmo tempo em que pedia ao Divino que me chamasse no palco para antecipar minha canja. Não dava pra aturar o pentelho.
– Por isso lhe digo. Se eu morasse numa caverna, resolveria isso rapidamente. Bastaria um tacape e pronto. Esse negócio de ter arte pra conquistar, não e comigo….
Não dava pra não deixar de rir do cara, insistentemente a tocar no meu braço:
– Você também não acha?
– Acho. Claro que acho.
– Pois, então, tenho ou não tenho razão?
– Ôôô…
Não lembro como me desvencilhei do camarada, naquela noite fortuita. O lance ficou marcado. Sempre recordo da figura quando o assunto é mesa de bar, do romantismo necessário em torno de quem gosta de noite.
Gilvan Barreto, meu singelo e saudoso amigo morando atualmente em Imperatriz, costumava dizer, com altíssima dosagem de filosofia 51:
– A noite é para quem respira pelo coração e bebe almas de sentimentos em todo copo emborcado.
Românticos são poucos
Românticos são loucos
Desvairados
Que querem ser o outro
Que pensam que o outro
É o paraíso…
Românticos são lindos
Românticos são limpos
E pirados
Que choram com baladas
Que amam sem vergonha
E sem juízo…
São tipos populares
Que vivem pelos bares
E mesmo certos
Vão pedir perdão
Que passam a noite em claro
Conhecem o gosto raro
De amar sem medo
De outra desilusão…
Romântico
É uma espécie em extinção!
Romântico
É uma espécie em extinção!
Românticos são poucos
Românticos são loucos
Desvairados
Que querem ser o outro
Que pensam que o outro
É o paraíso…
Românticos são lindos
Românticos são limpos
E pirados
Que choram com baladas
Que amam sem vergonha
E sem juízo…
São tipos populares
Que vivem pelos bares
E mesmo certos
Vão pedir perdão
Que passam a noite em claro
Conhecem o gosto raro
De amar sem medo
De outra desilusão…
Romântico
É uma espécie em extinção!
Romântico
É uma espécie em extinção!
Românticos são poucos
Românticos são loucos
Como eu!
Românticos são loucos
Românticos são poucos
Como eu! Como eu!
Hiroshi Bogéa
5 de junho de 2008 - 13:09Bia, conversando com Degas e com o Dico, memórias frescas de nosso passado, eles ratificam o nome do Altino. Segundo eles, o rapaz gostava mesmo de andar em “traje típico” e o ‘discurso’ dele era idêntico ao narrado no post.
Como se observa, você tem uma memória límpida, sinal de que o tempo lhe conserva ainda inteira.
O Pinguim é inesquecível.
“…la puerta se cerró detras de ti y nunca más volviste aparecer…”
Bia
3 de junho de 2008 - 22:28Chegar até este post e relembrar o Pinguim, Vavilson e seus meninos, é mais do que mereço.
Gostava de ir lá. Meu parceiro de fugas, algumas vezes, era o Pagão. Eu gostava de cantar, quando já havia pouca gente no salão.
A figura que você descreve, penso que se chamava Altino. Talvez seja coincidência, mas sentou-se comigo uma noite, desfiando o mesmo “ideário” feminino que você relata.
Não o vi mais. Apenas nessa noite. E, mesmo sem saber que ele reforçava o caixa dos meninos, acabei dedicando-lhe minha paciência e uma música, La puerta. que o Joãozinho tocou pra mim e que com seus olhinhos brilhantes e risonhos demonstrava perceber que, maldosamente, eu caprichava no refrão:
“…la puerta se cerró detras de ti y nunca más volviste aparecer…”
Bons tempos esses, companheiro, em que nos assombravam apenas os solitários dos bares e genéricos homens das cavernas.
Abração.