O Globo de Ouro, conquistado pela atriz Fernanda Torres, trouxe mais uma vez à luz o filme que mostra a selvageria dos “anos de chumbo” capitaneada pelas forças armadas, e que tem levado às salas de cinemas milhões de  brasileiros.

A premiação de melhor atriz por sua atuação em Ainda Estou Aqui coincide com o segundo aniversário dos eventos golpistas ocorridos em 8 de janeiro de 2023.

Enquanto a popularidade do filme reflete o interesse da sociedade sobre os eventos da ditadura e destaca a relevância da memória histórica e da reparação às vítimas e suas famílias pelos abusos daquele período, os recentes atos evidenciam a fragilidade da democracia no Brasil.

O filme representa uma chance para a sociedade brasileira refletir sobre a ditadura através da arte, porque estamos vivendo um momento único para sermos coletivamente desafiados a abordar este assunto, utilizando a arte e a cultura através de uma figura como a Fernanda Torres, o que torna a discussão e a disseminação do tema muito mais acessíveis.

“Ainda Estou Aqui” narra a trajetória da família Paiva, que em 1971, diante da intensificação da repressão da ditadura militar, se depara com o desaparecimento e a morte de Rubens Paiva, um engenheiro civil e político brasileiro. A narrativa é apresentada sob a ótica de Eunice Paiva, a esposa, interpretada por Fernanda Torres.

O filme desempenha um papel social significativo, permitindo que voltemos àquela época e fazendo com que as pessoas rejeitem esse período, se familiarizem com ele e compreendam as razões pelas quais atualmente enfrentamos constantes ameaças à democracia. É essencial que isso promova na sociedade brasileira um valor maior pela democracia, assim como uma aversão a ditaduras, autoritarismos, censura e restrições de direitos.

Desafios a superar

Entretanto, ainda existem numerosos desafios a serem enfrentados.

As consequências da ditadura continuam a ser desconsideradas por uma parte da sociedade, que inclusive a exalta. O evento antidemocrático ocorrido em 8 de janeiro de 2023 é uma das manifestações desse tipo de visão.

Recentemente, temos observado uma persistente rejeição a eventos históricos que ocorreram no Brasil, o que gera consequências prejudiciais para uma parcela significativa da população, incluindo aqueles que não entenderam ou não viveram aquele período histórico, marcado pela ditadura e suas repercussões sociais.

A obra cinematográfica revela uma lembrança e um segmento da sociedade que ainda batalha para que isso não seja recordado e, de fato, seja negado. É um esforço de negar a ocorrência da ditadura, afastar os efeitos prejudiciais que ela trouxe para inúmeras famílias e, até mesmo, ignorar os considerados subversivos, como ocorreu com aquela família, acompanhada de um desaparecimento que afetou profundamente sua história.

Estamos em um país que enfrenta desafios em relação às memórias, tanto as mais recentes quanto as mais antigas, em questão de tempo. Mesmo que ainda estejamos próximos do período da ditadura militar, que terminou algumas décadas, continuamos a conviver com vestígios e várias legados desse passado autoritário. Esses traços são prejudiciais e impactam negativamente o progresso da nossa democracia, comprometendo sua saúde, como demonstrado pelos ataques mais recentes, que culminaram em 8 de janeiro.

21 anos de ditadura

A ditadura militar durou de 1964 até 1985. Esse período, em que os militares exerceram o controle sobre o país, é caracterizado por repressão, censura à mídia, limitação dos direitos políticos e perseguição a quem se opunha ao governo.

Só para lembrar: a Comissão Nacional da Verdade identificou 434 casos de mortes e desaparecimentos ocorridos durante esse regime militar. Além disso, a Comissão Camponesa da Verdade também destacou os efeitos da ditadura sobre as comunidades rurais, apresentando em 2015 um relatório que relaciona 1.196 camponeses e simpatizantes que foram mortos ou desapareceram entre 1961 e 1988.

O Brasil ainda não alcançou a justiça de transição.

A Organização das Nações Unidas (ONU) define a justiça de transição como um conjunto de processos e instrumentos que visam ajudar uma sociedade a lidar com as consequências de sérias violações de direitos humanos que ocorreram em grande escala no passado, com o objetivo de garantir a responsabilização, a aplicação da justiça e a promoção da reconciliação.

A justiça pode ser considerada a ação reparatória mais essencial, pois envolve a punição dos grandes transgressores dos direitos humanos, incluindo os agentes estatais da repressão durante a ditadura, além de diversos civis. A ausência de condenações para os torturadores é extremamente prejudicial para qualquer nação.

O que precisamos é de memória, verdade e justiça.