Passando pouco mais das 18h30, com voz alta, a convocação geral:
Obediente, a meninada chega e é ajuntada em volta da mesa da sala, de madeira, firme, que “Ceará” mesmo fez. São netos do casal de onze filhos procriados. Duas lamparinas são acesas sobre a mesa. Na região do Sapecado onde moram Zé e Maria, ainda não chegou a Luz para Todos. A rede em extensão encontra-se perto. Pode ser que até junho de 2008 ilumine o barraco da família.
No quase anoitecer, o jantar não é de gala, nem de galo. É uma deliciosa galinha caipira morta uma hora antes diante de nossos olhares. As mulheres da família, num total de seis filhas, cuidam das panelas na lenha ainda estalando de queimar. O cheiro de café coado espalha-se pelo ambiente deixando em seu interior agradável satisfação. É tão bom sentir aroma de café feito na roça!
Sentados, já do lado de fora da pau-a-pique, olhamos para o céu cheio de estrelas. Parecem mil-e-tantos vaga-lumes no meio do mato escuro! Sob a claridade que vem do céu, dá pra ver boi Ciço, que tem a graça em homenagem, claro, ao padre santo dos cearenses. O animal fica ali perto da casa toda noite daquele jeito, deitado, “só pensando em coisa ruim”, diz o anfitrião -, sem explicar quais maldades o boi tem.
Já passa das 20 horas. Pelo menos para dona Maria das Graças, a conversa vai finando que nem cigarrinho-de-paia. Observa, fechando os olhos e abrindo-os, vez por outra, certamente na vã tentativa de demonstrar estar atenta a conversa.
Será que o serenozinho que começa a espalhar-se da mata umedece os sonhos de dona Maria? Que sonhos ela tem?
A criançada brinca, correndo e gritando, com a barriga cheia, feliz, sob o luar da Amazônia em seus últimos dias de aparição límpida antes do inverno que promete ser avassalador. Escuto leve ronronar saindo de dona Maria, entregue ao sono. Miudeza de tempo.
Hoje cedo, 25, lembrei-me do dia e noite em que passei com minha equipe da VídeoV, sexta-feira última, gravando externas para um documentário sobre Agricultura Familiar, no assentamento de seu Ceará.
Lembrando, tenho absoluta certeza de que no Sapecado, pelo menos na casa do maravilhoso casal, Papai Noel não passou por lá. Não que o breu da noite tenha escondido o barraco. “Se for pra dar presente prum menino desse aí, tem que dar pra todos senão é uma injustiça de nem Padin Ciço perdoa. Como não temos dinheiro, aqui não tem Papai Noel”
Madalena, 12 anos; Antonio, 10 anos; Salvador, 7 anos; Neguin, 6 anos; Jurema, 8 anos; Lucas, 6 anos; Valmira, 9 anos. Netos de Zé Ceará e dona Maria das Graças, aparentemente pareceram meninos felizes, protegidos pelo carinho e atenção de pais e avós -, morando em lugar a carecer ainda de tudo para se ter vida digna.
Ao vê-los ali brincando e livremente soltos entre bichos e matas (do pouco que ainda resta) deu para perceber o quanto estavam alheios ao Natal. Quem sabe, eles sim, fazendo o Natal de todo dia que sonhamos ter.
Sempre tive a certeza de ser o amor, quando plenamente realizado, o principal fator do processo genético que determina as mutações necessárias para a sobrevivência da espécie humana. Mesmo sendo pobres residentes na zona rural, os netos do casal demonstraram evidente relação entre o ato de serem amados e a ludicidade da existência, pautados por ações que exprimem os grandes prazeres da infância: brincar, correr, cansar e dormir.
Concordando com George Groddeck (médico e pioneiro da psicossomática), o homem é o que ele foi e viveu até o fim da adolescência.
Lá no Sapecado, cada um faz de cada um seu brinquedo sincero. E a meninada é feliz.
Sem papai Noel à porta.