Hiroshi Bogéa – País europeu, Portugal foi ditadura até 1974. Ditadura e país colonialista.
Ditadura apoiada pelos Estados Unidos.
O regime de António de Oliveira Salazar (1932-1968) e Marcello Caetano (1968-1974) foi um bastião do obscurantismo religioso no coração da Europa.
Como a história não é linear nem segue leis de qualquer tipo, um salto inesperado rompeu o lacre da repressão.
A população apropriou-se de uma rebelião de militares insatisfeitos com o tratamento que recebiam e com o papel desempenhado nas colônias africanas e botou o bloco na rua.
Cravos nos canos dos fuzis.
Os capitães portugueses teriam muito a ensinar ao capitão brasileiro e aos seus generais de opereta.
A Revolução dos Cravos, que eclodiu em 25 de abril de 1974, derrubou o Estado Novo.
Hoje, 25 de abril, o feito histórico completa 50 anos.
Nada era mais velho e mofado do que o Estado Novo português. Hipocrisia, autoritarismo, censura, repressão, moralismo e privilégios de casta rimavam com União Nacional.
Portugal vivia de um passado inglório: colônias, medievalismo religioso, parasitismo econômico, clientelismo político, cartorialismo e culto à personalidade.
A Revolução dos Cravos, como ficou conhecida pelo cenário poético produzido pelo povo português ao colocar galhos se cravos nos canos dos fuzis e baionetas dos militares que se lançaram às ruas para derrubar o regime ditatorial, pôs o passado por terra e chegou a sonhar com um futuro de igualdade e solidariedade que assustou o mundo liberal.
Os Estados Unidos temeram que a Europa se tornasse socialista.
A canção da liberdade, Grândola, Vila Morena, de Zeca Afonso, louvava as ordens do povo, que tomava as rédeas, que não queria mais ser cavalgado.
Uma inversão de perspectiva tão inimaginável quanto linda.
Se a igualdade ficou pelo caminho, uma página inesquecível da história foi escrita.
Quem quiser entender literária e profundamente o triste lugar de Portugal na África até os últimos dias do colonialismo, leia os romances de Lobo Antunes.
Nada mais forte, doloroso, barroco e realista. Nestes nossos dias que toda utopia não passa de poesia adolescente, com todas as ilusões bloqueadas pelos fracassos dos utopistas, a Revolução dos Cravos reaparece como um dos últimos suspiros das ilusões que seriam perdidas.
Vale dizer que, de toda maneira, a maior vitória foi alcançada e sacralizada: a democracia.
A gente até pode dizer: Pai, afasta de nós esses que menosprezam a democracia por formal, burguesa, representativa, frágil.
Em Portugal, o Movimento das Forças Armadas (MFA) jogou a carta da ruptura com o atraso.
O futuro imediato seria do processo revolucionário em curso.
Viria com a União Europeia. Nada muito próximo do grande devaneio da fraternidade nacional com perfume de flor.
Nada mais longe do nefasto passado do “orgulhosamente sós”.
O país se reinventou.
Ainda arrasta as correntes dos saques que executou por séculos, é verdade, também.
A Revolução dos Cravos plantou uma nova ideia: “O povo é quem mais ordena”, como diz a canção hino que marcou o movimento libertário.
Em 25 de abril de 1974, eu morava no Rio de Janeiro, no bairro Santa Teresa.
E na manhã daquele dia, lá estava eu descendo, como fazia diariamente, a avenida Almirante Alexandrino, em cima de um bondinho, rumo ao centro do Rio quando, num barzinho próximo ao Arcos da Lapa, alguém gritou, bem forte, segurando um copo de cerveja:
– “A ditadura caiu em Portugal, falta agora aqui!”, gritava o jovem (nunca esqueci essa cena, porque me fez chorar dentro do bondinho, emocionado) em pleno regime ditatorial do general Ernesto Geisel.
A ditadura brasileira completara 10 anos, um mês antes, e se estenderia ainda por mais onze anos, para desespero de várias gerações.
Em 25 de abril de 1974, de terra de tantas colônias, Portugal passava a ser terra de fraternidade.
Era um salto grande demais para a força da realidade.
O Estado Novo, porém, estava enterrado pelas ordens do povo.
Uns meses depois de 25 de abril, Chico Buarque, também carregado de emoção, comporia “Tanto Mar”, saudando a chegada da primavera libertária de Portugal.
“Foi bonita a festa, pá / Fiquei contente e ainda guardo, renitente
um velho cravo para mim; Já murcharam em tua festa, pá mas certamente esqueceram uma semente em algum canto de jardim;
Sei que há léguas a nos separar, tanto mar, tanto mar; sei também quanto é preciso, pá – navegar, navegar. Canta a primavera pá / cá estou carente / Manda novamente algum cheirinho de alecrim!”