“Temos que estar sintonizados com a maré e ajustar o ponteiro dos nossos relógios. Quando tem maresia, a gente precisa sair mais cedo de casa porque a navegação vai ser mais lenta e as crianças não podem chegar atrasadas à escola”. Esta é a explicação de Cintya Souza Machado, que pilota uma das 33 embarcações que fazem o transporte escolar nas ilhas de Belém, a serviço da Secretaria Municipal de Educação (Semec).

Cintya Machado aprendeu a navegar com o pai, numa canoa a remo, nos furos e rios da ilha do Combu, uma das 39 ilhas que compõem o território insular da capital paraense. Ela sabe que todo dia o vento muda de direção e é preciso estar muito atenta na condução da embarcação. No período das marés lançantes, em março e abril, os pilotos, às vezes, são surpreendidos com a destruição dos trapiches onde as crianças embarcam e desembarcam, em frente de suas casas. Então é preciso buscar alternativas mais próximas para poder transportar o estudante até a escola.

 

As 31 rotas diárias

 

 

São 31 rotas que as embarcações percorrem todo dia para conduzir as crianças de casa para a escola e da escola para casa. São dez rotas para atender à escola Anexo São José, na ilha Grande; cinco para a Milton Monte, na ilha do Combu; quatro para a Sebastião dos Santos Quaresma, também no Combu; três para a Navegantes, na ilha da Várzea; três para o Anexo Santo Antônio, no Igarapé Piriquitaquara; três para a Maria Clemildes, na ilha de Mosqueiro; duas para o Anexo Navegantes, no igarapé do Aurá; e uma para a Remídio Fernandes, também na ilha do Mosqueiro.

“A escola e os pais confiam plenamente no transporte escolar”, explica a professora Odilene de Sousa, coordenadora pedagógica da Escola Navegantes. Os pilotos e seus auxiliares moram nas ilhas e conhecem bem as comunidades. Por isso também servem de ligação entre a escola e as famílias dos estudantes. Eles levam recados dos pais e também transmitem os avisos de reuniões nas escolas. Este tipo de logística de transporte deu tranquilidade aos pais e facilitou muito o trabalho da direção das escolas.

O professor Jenijunio dos Santos, da Coordenação da Educação do Campo, das Águas e das Florestas, explica que a Semec investiu na formação dos barqueiros e seus auxiliares. “Para a criança, a escola começa quando ela entra no barco e termina quando ela desembarca na frente de sua casa”. Ainda segundo Jenijunio, “o gesto de estender a mão para as crianças é um ato de acolhimento e solidariedade”.

 

Observadores do bem-estar das crianças

 

Além do barqueiro, o ajudante dele, quando percebe o comportamento diferenciado de uma criança, já repassa para a professora, diretora e outros servidores da escola. “Uma criança que costumeiramente é alegre, mas mostra-se calada e triste, já é um sinal de que alguma coisa não vai bem”, explica Jenijunior. “Já tivemos o caso de uma ajudante de barqueiro que identificou a diferença de comportamento numa criança, durante a viagem, avisou a professora. Depois se descobriu que a criança tinha assistido a uma briga entre pai e mãe”.

Mas o comportamento apático ou triste pode ser também por falta de alimento em casa. Então a criança recebe um lanche antecipado para que possa manter o mesmo desempenho e comportamento dos outros dias.

Já o professor de Língua Portuguesa Jorge Lima, da escola São José, recorda de um caso que aconteceu, ano passado, quando foi observada a ausência de sala de aula de um estudante de 12 anos. O auxiliar de barqueiro descobriu que o adolescente estava trabalhando na coleta de açaí e informou à direção da escola. Imediatamente houve um diálogo com a família e a escola organizou uma palestra com a presença de um representante do Tribunal Regional do Trabalho sobre o trabalho infantil.

 

Transporte tranquilo

 

Areta Motta de Moraes, que trabalha há 12 anos nas escolas das ilhas, utiliza uma das lanchas que a Semec disponibiliza para transportar os professores e o pessoal operacional. Ela mora no bairro do Guamá e sai de casa às 6 da manhã para fazer a travessia para a ilha Grande, onde trabalha. “É um transporte tranquilo, sem os estressantes engarrafamentos e a gente ainda aprecia a beleza do rio, as casas das margens e a floresta”.

Esse diferencial também encanta a professora Jaqueline Lacerda, coordenadora pedagógica da Escola São José, que morou em Águas Claras, em Brasília, e se deslocava para o trabalho em trens do metrô.

Alunos e horários especiais

Miguel Diniz, coordenador de Transporte da Semec, informa que sãos transportados, diariamente, pela frota fluvial 759 alunos. Durante o dia as crianças permanecem na escola no turno da manhã até as 11 horas e à tarde chegam por volta de 12h30 e retornam para suas casas às 16 horas. Na Escola Navegantes ainda existe o transporte que garante a presença de estudantes e professores no turno da noite, ao curso de Educação de Jovens, Adultos e Idosos.

Cintyani Machado, mãe do Khellven Queiroz, de 7 anos, que estuda na Escola Milton Monte, tem muita confiança no transporte escolar fluvial porque sabe que seu filho está sendo conduzido em segurança tanto pelo piloto como pelo auxiliar: pessoas treinadas, possuidoras de documento de habilitação expedido pela Diretoria de Portos e Costas da Marinha.

 

“Minhas crianças”

Quando as crianças descem nos trapiches de suas casas e acenam para Eder Nelson Cardoso, o piloto se emociona: “Esta é a minha alegria diária, são as minhas crianças. Eu fico triste quando os meninos nos deixam porque vão para outras escolas do ensino médio”.

Amanda Nascimento Caluf, moradora da comunidade Boa Vista, que tem uma filha de 17 anos, e cursa o ensino médio no continente, na escola Santa Maria, vive preocupada com a distância que a jovem precisa fazer todo dia por falta de uma escola de ensino médio nas ilhas do sul de Belém.

O professor Jenijunio dos Santos explica que a Semec mantém nas ilhas nove escolas: sete de educação infantil ao 5º ano; a Escola Municipal de Educação Infantil Cotijuba; e o Anexo São José, que atende até ao nono ano. “Em mais de 500 anos é a primeira vez que uma escola até o nono ano foi implantada no território. Antes as crianças iam para o continente e ficavam expostas na praça Princesa Isabel aguardando o barco”, detalha o professor. (Texto / Fotos: Paulo Roberto Ferreira)