O Código Ambiental do Rio Grande do Sul, que levou nove anos entre debates, audiências e aperfeiçoamentos, foi atropelado pelo governo Eduardo Leite (PSDB) em 2019, primeiro ano de seu primeiro mandato. Seu projeto limou ou alterou 480 pontos da lei ambiental do estado.

O texto original, de 2000, inclusive tivera a ajuda na elaboração de José Lutzenberger, uma das maiores referências em ecologia no Brasil. A ideia atrás da mudança foi a de flexibilizar as exigências e favorecer os empresários, concedendo-lhes, em alguns casos, o próprio auto licenciamento.

Entre a apresentação do projeto de Leite em setembro de 2019 e a aprovação pela sua base de sustentação na Assembleia Legislativa do RS em 11 de dezembro do mesmo, foram apenas 75 dias – só não transcorreu ainda em menor tempo porque uma decisão judicial impediu a tramitação em 30 dias sob regime de urgência. Neste ínterim, houve apenas uma audiência pública, que terminou em bate-boca.

 

“Quero cumprimentar os 37 deputados”

Foi tudo tão à toque de caixa que a discussão nem mesmo passou pela Comissão de Saúde e Meio Ambiente da Assembleia. Tampouco houve consulta aos próprios técnicos da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam).

Leite passou sua boiada na garupa de 37 votos, ofertados por partidos como PSL, PTB, PSDB, MDB, PP, DEM e outras siglas situadas à direita e centro-direita. Apenas 11 deputados negaram seus votos, todos alinhados à esquerda ou à centro-esquerda. O governador demonstrou imediatamente sua gratidão aos fiéis seguidores:

“Quero cumprimentar os 37 deputados que votaram a favor de uma reforma do nosso Código Ambiental, para que possamos, protegendo o ambiente, colocar o Estado para crescer”, declarou. Garantiu que seria possível “manejar a natureza com responsabilidade para que as futuras gerações possam ter as condições de se sustentar, com respeito ao ambiente, preservação e desenvolvimento econômico sendo gerado”.

 

“Projeto desestruturante, destruidor e prostituinte”

A devastação do Código deixou os ambientalistas gaúchos em pé de guerra. “É um projeto desestruturante, destruidor e prostituinte, porque prostitui a questão ambiental numa liberalização infundada que destrói 10 anos de trabalho”, reagiu Francisco Milanez, então presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), a mais antiga entidade ambientalista do país, fundada por Lutzenberger. “É uma proposta leviana e precipitada. Deixa fazer o que (os empresários) quiserem”, disse.

Milanez tachou a proposta como “um retrocesso de 40 anos”. Considerou irônico que, justamente o Rio Grande do Sul, pioneiro na luta ambiental no Brasil, primeiro com Henrique Roessler nos anos 1950 e depois com Lutzenberger e a Agapan nos anos 1970, enveredasse pelo caminho inverso.

“Essa luta gerou o primeiro órgão ambiental municipal, o primeiro estadual, o primeiro mestrado de Ecologia numa universidade, que foi a UFRGS, a primeira lei de agrotóxicos, uma Constituição, a do RS, muito voltada para a questão ambiental”, enumerou. “E agora o estado abandona a razão e se alia a uma especulação estúpida”, acusou.

 

“Meio ambiente a preço de banana”

Na votação das mudanças na Assembleia, entendidas pela oposição como um novo código, a deputada Juliana Brizola, (PDT) reclamou que “”países desenvolvidos tratam o meio ambiente como se fosse ouro, e nós queremos tratar a preço de banana”.

“Aqui se permite a exploração de área de preservação permanente, sem licença anterior. Acaba-se com a proteção das nascentes. Protege-se criminoso ambiental, inclusive possibilitando que ele ganhe financiamento, se o seu julgamento ainda não tiver transitado em julgado”, atacou o deputado Jefferson Fernandes (PT).

Na sua visão, a alteração do código possibilitaria “a comercialização e o transporte de árvores nativas e de espécies que estão ameaçadas de extinção”. Também acabaria com proteção das dunas, dos banhados e das praias.

Luciana Genro (Psol) disse que o Rio Grande do Sul estaria “na contramão de uma onda mundial, que é de valorização e de preocupação com a causa ambiental”, acrescentando que a aprovação do projeto seria “uma irresponsabilidade que terá um preço elevado”.

Interessados em não polemizar e apressar a aprovação, os governistas se abstiveram do debate, com a exceção de Sérgio Peres (Republicanos), que criticou os ambientalistas nas galerias, chamando-os de “vanguarda do atraso” e pedindo sua remoção.

 

“Tentativa de travestir o retrocesso como moderno”

Logo que o projeto de Leite foi apresentado, um grupo de técnicos da Fepam qualificou a iniciativa como “uma tentativa de travestir de ‘moderno’ um código que retrocede e precariza não somente o licenciamento, mas tudo o que se refere à garantia dos valores ambientais”.

O documento, que pode ser lido aqui, é uma leitura técnica e detalhada das mudanças pretendidas. Além de questionar alterações substanciais, ataca a quantidade de erros, confusões de conceitos e imprecisões do projeto.

 

O que dizia o governo

À época, o governo estadual afirmava que o projeto do novo código significaria “um melhor equilíbrio entre a proteção ambiental e o desenvolvimento socioeconômico”. Apesar das críticas, o Palácio Piratini tratou a proposta como uma “modernização” das leis que protegem o ambiente natural.

A administração estadual chegou a afirmar que a inovação iria assegurar “maior proteção ao meio ambiente”, bem como “mais segurança jurídica e embasamento técnico”, além de “incentivar a participação da sociedade e estar alinhado com a legislação federal”.

 

Veja algumas das críticas levantadas pelos técnicos:

 

1 – Acaba com os quatro artigos do capítulo 5, que tratam de medidas de proteção, por exemplo, às áreas adjacentes às unidades de conservação. Também deixa de proteger áreas reconhecidas pela Unesco como reservas da biosfera; os bens tombados pelo Poder Público; as ilhas fluviais e lacustres; as fontes hidrominerais; as áreas de interesse ecológico, cultural, turístico e científico, os estuários, as lagunas, os banhados e a planície costeira; as áreas de formação vegetal defensivas à erosão de encostas ou de ambientes de grande circulação biológica.

2 – Apaga todo o segundo capítulo do código de 2000, aquele referente aos estímulos destinados à proteção ambiental. “Foram suprimidos todos os mecanismos de apoio financeiro do Estado, até mesmo para as pesquisas e centros de pesquisas, manutenção de ecossistemas, racionalização do aproveitamento da água e energia, entre outras tantas”, assinala o texto.

3 – Afrouxa o licenciamento ambiental, criando grave risco ambiental. É o que acontecerá com a criação da LAC, sigla que identifica a “Licença por Adesão de Compromisso”. Ou seja, “o empreendedor pode iniciar a instalação e a operação baseadas apenas numa declaração”. É, na prática, o auto licenciamento.

4 – Cria “uma terceirização disfarçada” através do artigo 56. Permite contratar pessoas físicas ou jurídicas para cumprir prazos para emissão de licenças, ocupando a atividade-fim da Fepam e desconsiderando o instrumento do concurso público.

5 – Desmonta o Código Florestal/RS. Revogam-se vários artigos que protegem as florestas e espécimes importantes da flora gaúcha. Entre eles, os que citam a proibição da coleta, o comércio e o transporte de plantas ornamentais oriundas de florestas nativas. Também cai a proibição da coleta, a industrialização, o comércio e o transporte do xaxim. Retira-se a proibição “da supressão parcial ou total das matas ciliares e das vegetações de preservação”.

6 – Abre caminho para os incêndios florestais ao riscar o artigo 28, aquele que proíbe o uso do fogo ou queimadas nas florestas e demais formas de vegetação natural. Também elimina o artigo 1º que reconhece as florestas nativas e demais formas de vegetação natural como bens de interesse comum.

7 – Retira o veto ao corte de árvores, comercialização e venda de florestas nativas, “numa sucessão de equívocos e desconhecimento”.

8 – Revoga o artigo 35 do Código Florestal, aquele que proibia ou limitava o corte das espécies vegetais em via de extinção.

 

Fonte: BdF Rio Grande do Sul