Trinta anos depois, reler pela terceira vez Sagarana é absorver a obra de Guimarães Rosa num grau de compreensão bem mais maduro do que quando nos deparamos com o livro ainda jovem.

Compreender e absorver a obra, degustando cada página dos nove contos carregados de aventura, morte, animais forizados em gente.

Contextos de reflexões subjetivas e espiritualistas a nos embalar por peripécias de antigas histórias épicas e heróicas dos sertões das Minas Gerais -, principalmente no meio de cinco contos: O Burrinho Pedrês, Duelo, São Marcos, A Hora e a Vez de Augusto Matraga e Corpo fechado.

Contos narrados em tom de histórias de fada.

Por exemplo: o Burrinho Pedrês e Conversa de Bois nos lembram narrativas de fundo de rede quando éramos colocados para dormir, ao som de “Era uma vez…”

Era uma vez um burrinho pedrês
Miúdo e resignado, vindo de Passa-Tempo
Conceição do Serro, ou não sei onde no sertão.
Chamava-se Sete-de-Ouros,
E já fora tão bom,
Como outro não existiu
E nem pode haver igual.

Animais transformados em heróis, questionando o saber dos homens com o seu suposto não saber.

Delícia!

A genialidade de Rosa alterna focos narrativos no diálogo de instrumentos – uma clarineta insinuante, fanhosa e meio fraca [associada ao personagem Turíbio] e uma tuba solene, penetrante, mas arquejando pelo esforço, em Duelo.

O matuto Manuel Fulô, de Corpo Fechado, contando histórias do sertão ao homem da cidade.

Emocionante sentir o estilo Guimaraniano num dos contos mais bem tramados do livro: Minha Gente, que tem a história principal emendada, alterada, recontada por pequenos detalhes e elementos dados pouco a pouco ao leitor.

Extraordinário o lance da partida de xadrez, narrada no início, mostrando como devemos entender o enredo em si: um xeque, dado pelo protagonista, acaba se virando contra ele próprio.

Tipo de narrativa a insinuar ao leitor que as aparências dos fatos escondem, mais que revelam, sua verdadeira intenção.

Repletos de histórias dentro de histórias, de monólogos interiores desvendando o universo dos homens, dos bichos e das coisas, os contos de Sagarana nos permitem uma espécie de ritual de iniciação, ao longo da leitura. Esta iniciação ocorre se conseguirmos compreendê-los em sua simbologia, na falta de lógica, mítica e poética que humaniza em sentido profundo os protagonistas – aparentemente apenas sertanejos dos Gerais – e universaliza o sertão.

– “O sertão é o mundo”, diz Riobaldo de Grande Sertão: Veredas.

De Sagarana, podemos afirmar o mesmo. Porque a obra é um conjunto de sagas, histórias épicas, folclóricas, amor, mistério e aventura – universalizando o sertão, misturando popular e erudito, fecundando de vida o mundo primitivo e mágico dos Gerais.

Na tarde de sábado, a releitura de Guimarães Rosa nos enfurece de emoção. Juazeiros espalhados no verde Graciliano. Como macambiras a enveredar Sertões.

Sertões Guimaranianos.

Assim como nos deixa terrivelmente fecundado, a transposição dos nove contos a ritmos Gerais, magistralmente resumidos numa peça musical de Paulo César Pinheiro na voz de sua saudosa esposa, Clara Nunes.